O Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais foi formalmente instituído na UFMG a partir de 2015. Este programa encontra-se em diálogo e se inspira na proposta do Encontro de Saberes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCTI) de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB). Executado a partir de 2010, este projeto formatou a metodologia para a implementação da disciplina “Encontro de Saberes: Artes e Ofícios dos Mestres Tradicionais”, que atualmente faz parte da grade horária regular da graduação do Departamento de Antropologia da UnB.
O projeto do Encontro de Saberes constitui uma iniciativa inovadora na promoção de diálogos sistemáticos entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais. O seu objetivo central é incluir como docentes do ensino superior os mestres e mestras que representam a rica diversidade epistemológica existente no país nas mais diversas áreas, viabilizando aprendizados mútuos, e buscando uma aproximação simétrica entre os saberes acadêmicos e aqueles provenientes de outros modos de experimentar e conhecer o mundo, em especial os das matrizes indígenas e afro-descendentes. A proposta baseia-se em uma perspectiva pedagógica que integra o pensar, o sentir e o fazer, buscando oferecer aos alunos da universidade a oportunidade de experimentar outras modalidades de conhecimento. Rompendo com a dicotomia sujeito/objeto, enfatiza o protagonismo de indivíduos e coletividades geralmente enquadrados como objetos de estudos, colocando a ciência em intenso diálogo com um manancial de conhecimentos historicamente invisibilizados.
A partir de 2014 o projeto do Encontro de Saberes passou a envolver também, além da UnB, outras universidades parceiras brasileiras que incluem: a UFMG, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Estadual do Ceará (UECE), a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) (atualizar infos.). Na UFMG este projeto teve início em 2014, com a disciplina “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”, realizada em parceria com o INCTI Inclusão da UnB. Paralelamente, teve lugar o “Seminário Encontro de Saberes: conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos”, conduzido no âmbito da pós-graduação e que envolveu alunos e alunas dos programas de antropologia, artes, comunicação, educação e música.
Em 2015 esta iniciativa foi oficializada na UFMG, através da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD), e tornou se o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais. Desde então, este programa conta com uma oferta semestral regular de disciplinas, que são abertas para alunos e alunas de todos os cursos de graduação, sendo que aqueles que cumprem 360 horas-aula podem receber um certificado de integralização. Entre as experiências piloto realizadas em 2014 e o final do primeiro semestre de 2017, este programa já ofereceu 14 disciplinas, contando com a colaboração de 36 mestres e mestras e 22 aprendizes das mais diferentes culturas e regiões, do norte ao sul do país; e de 26 professores e professoras parceiros com formação em diversas áreas.
O projeto do Encontro de Saberes constitui um desdobramento da luta por uma política de inclusão e de ações afirmativas, principalmente para negros e indígenas, nas universidades brasileiras. Para José Jorge de Carvalho, coordenador do INCTI Inclusão e um dos principais idealizadores desta proposta, a luta pela inclusão dos negros e indígenas nas universidades passa também pela inclusão dos saberes negros e indígenas. Neste sentido, para além de políticas de inclusão através de ações afirmativas para estudantes indígenas e afro, é importante também uma ampliação do universo dos saberes presentes nas universidades, possibilitando abranger uma “multiepistemia”; e uma ampliação radical do corpo docente universitário, incluindo os mestres e sábios indígenas e afro como professores de cursos regulares em diferentes áreas. Neste sentido, cabe indicar que esta iniciativa visa atender às demandas das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatória a inclusão das temáticas indígenas e afro-brasileiras nas escolas, levando em conta que as universidades têm um papel fundamental para a qualificação e viabilização da aplicação destas leis.
A inclusão do conhecimento dos mestres e mestras de comunidades e culturas tradicionais nas universidades é importante, entre outros aspectos, porque possibilita romper com a monoepistemologia que caracteriza grande parte dos meios acadêmicos no Brasil. Na America Latina as universidades foram historicamente constituídas como brancas e excludentes. Somado a isto, em geral os cânones acadêmicos são marcados pela rigidez das fronteiras disciplinares e por uma atitude eurocêntrica que privilegia a ciência ocidental e exclui os saberes criados e reproduzidos no âmbito das comunidades e grupos étnicos. Deste modo, especialmente no contexto dos países latino-americanos, é fundamental dialogar com as lógicas, racionalidades e cosmovisões indígenas e africanas que fazem parte de nossas culturas, e que costumam ser confinadas a condição de objetos de estudos antropológicos.
Trata-se, portanto, de uma iniciativa que parte do gesto político-pedagógico de alargamento do horizonte epistemológico que delineia o papel social da universidade. Este alargamento está ligado ao questionamento da matriz eurocêntrica, calcada no modelo clássico da ciência positivista, dando abertura para uma multiplicidade de saberes. Levando em conta debates atuais no campo da antropologia e das ciências em geral, o projeto busca desenvolver iniciativas práticas que promovam a diversidade, abordada aqui pelo viés do múltiplo. Neste sentido, a proposta de inclusão dos saberes tradicionais nas universidades visa, mais do que a legitimação desses saberes pelos saberes científicos, a transformação das nossas próprias práticas e paradigmas acadêmicos.
A Universidade Federal de Minas Gerais possui um significativo histórico de protagonismo em ações de reconhecimento e inclusão dos mestres e mestras de saberes tradicionais em suas instâncias de produção e compartilhamento do saber. Entre estas iniciativas, cabe mencionar a produção de livros de autoria indígena, hoje liderada pelo grupo Literaterras (FALE); a participação de mestres indígenas nos seminários e encontros promovidos pelo FIEI (FAE); e os projetos “Artesanato Cooperativo” e “Saberes Plurais”, vinculados ao Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha (PROEX e DAC). Somado a isto, entre 2012 e 2015 (verificar datas), o Festival de Inverno da UFMG, cujo tema foi “o bem comum”, engajou-se ativamente na via de reconhecimento dos mestres e mestras quilombolas, afrodescendentes e indígenas, possibilitando que os participantes entrassem em contato direto com esses saberes. Ainda em 2012, a mesma equipe organizadora do Festival de Inverno, organizou o seminário “A cosmociência Guarani, Mbyá e Kaiowa e o reconhecimento acadêmico de seus intelectuais”. Finalmente, em 2013 o IEAT recebeu como cátedra o líder e xamã Yanomami, Davi Kopenawa, que realizou diferentes palestras nas diversas unidades da UFMG. Outra iniciativa relevante são os eventos ligados ao Forumdoc.bh (FAFICH), que terá em 2017 sua 21a. edição, e que regularmente conta com a participação de cineastas indígenas e quilombolas.
Paralelamente à participação na organização de várias destas atividades, o Comitê Gestor do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais vêm conduzindo no âmbito da UFMG um debate sobre a outorga do título de Notório Saber para os mestres e mestras dos saberes tradicionais, buscando colaborar para que esta instituição encontre seu próprio caminho com relação a esta demanda. Consideramos que a titulação dos mestres demanda uma discussão qualificada, com setores diversos da sociedade, como o INCT de Inclusão, o MINC, o IPHAN, o CNPq, e os pesquisadores e pesquisadoras envolvidos com o tema. Consideramos também que a complexidade do assunto é proporcional à riqueza de situações que passarão a se figurar e ao tempo de atraso que acumulamos com relação a esta questão.
A importância desta discussão encontra-se relacionada ao enorme desconhecimento, presente em diversos âmbitos da sociedade brasileira e em geral reproduzido nas diferentes instâncias da educação, com relação à ação destes mestres e mestras, que são os guardiões de saberes, da multiplicidade de línguas, de repertórios mítico-poéticos, de grãos, de ofícios em extinção, e que são também os protetores das comunidades tradicionais. Tal desconhecimento, certamente, é dos principais responsáveis para que o ódio étnico-racial se incruste ainda mais nas entranhas do tecido social e foi a motivação central das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, ainda pouco observadas nos currículos das Licenciaturas nas IFES, e nas diversas áreas da educação em geral.
Ao mesmo tempo, esses mestres e mestras vêm sendo consensualmente apontados como possuidores de um conhecimento integral sobre suas áreas de domínio; como possuidores e transmissores de uma “sabedoria” e não apenas um ofício; e sobretudo como agentes vinculados a uma comunidade e reconhecidos por ela. Embora haja este consenso, sabemos da existência de pessoas que possuem em seus domínios de saber grande maestria e que, pelas razões históricas da diáspora africana, da exclusão, da perseguição de comunidades inteiras de povos originários, passaram a viver em centros urbanos, distantes de suas comunidades de origem. Levando tudo isto em conta, é inegável que este projeto possui um caráter reparador e afirmativo, por ser uma proposta de inclusão e descolonização. Nesse sentido, cabe também apontar que os mestres e as mestras convidados para colaborar com o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, a maior parte com pouca ou nenhuma instrução educacional formal, são em geral oriundos de contextos de luta por direitos básicos, como o direito à terra e à manutenção de seus modos de vida tradicionais.
Um dos aspectos mais relevantes da proposta do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais é a inversão das relações com as comunidades, coletivos e sujeitos daquela que convencionalmente recorta a relação da universidade com o seu exterior: o movimento é o de trazer os mestres para dentro e não o de ir buscar os seus saberes em suas comunidades para alimentar as pesquisas e as ações de extensão. Chamamos a essa outra movimentação dos saberes de experiência de acolhimento, sendo que esta deve provocar um deslocamento também da universidade. Ela sai de seu lugar seguro de porta-voz/portadora do saber que se destina as comunidades, coletivos e sujeitos, como à maneira de um “processo civilizador”, e se coloca em interação com eles, podendo ser também modificada.
Somado a isto, ao longo da nossa experiência a partir de 2014 vêm se multiplicando os relatos dos mestres e mestras dizendo que sua inserção na universidade criou uma maior confiança nos jovens de suas comunidades sobre a relevância do aprendizado das tradições. Não menos importante, têm se multiplicado também os relatos dos alunos e alunas da universidade que tiveram na experiência de contato com esses mestres e seus saberes a motivação para recuperar e reativar seus antepassados negros e indígenas e seus conhecimentos. Consideramos, portanto, que a força dessa experiência tanto nas comunidades de origem dos mestres quanto na comunidade acadêmica propõe um envolvimento político e afetivo capaz de reconstituir nossas redes de memória, as relações entre “tradição” e “modernidade”, e o nosso modo de pensar a história do Brasil.